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Trens de Double Stack entre Santos e o Planalto Paulista: problemas e soluções

O trem de Double Stack da Brado preparado para iniciar a primeira viagem de Sumaré para o Estado do Mato Grosso em junho de 2019. (Foto: Eric Mantuan)

A Serra do Mar sempre representou um desafio à ocupação e ao desenvolvimento do território paulista a partir da Vila de São Vicente.

Por iniciativa de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, mediante um contrato de concessão aprovado pelo Decreto Imperial número 1.759, de 26 de abril de 1956, a nova ferrovia teria como principal finalidade o transporte de passageiros e do café para exportação pelo Porto de Santos.

As obras a cargo de uma empreiteira britânica foram iniciadas em 24 de novembro de 1860, se arrastando ainda na Baixada Santista e gerando uma crise que acabaria por levar Mauá à falência, passando então o controle da concessão diretamente aos britânicos.

A partir daí, “milagrosamente” a linha avançou rapidamente Serra acima, com a implantação de um sistema funicular, chegando a São Paulo em 1865 e a Jundiaí em 1867.

Como resultado, estabeleceu-se um monopólio do acesso ferroviário entre o Planalto Paulista e a Baixada Santista pela concessionária The São Paulo Railway Company, mais conhecida pela sigla “SPR” e pelo apelido de “Inglesa”.

A SPR tinha no centro de São Paulo, junto ao Mosteiro da Luz, sua principal estação, que acabaria ficando mais conhecida como Estação da Luz, ainda instalada numa edificação simples e contando com uma oficina de manutenção algumas centenas de metros mais adiante.

Com a renovação do contrato de concessão aprovado pelo Decreto número 1.999 de 1895, a SPR se obrigou, dentre outros investimentos, a duplicar o sistema funicular na Serra (construção que passaria a ser conhecida como “Serra Nova”) e a construir uma nova estação no centro de São Paulo.

O projeto da nova estação incluiu o rebaixamento das vias, de forma a suavizar a rampa entre o Pari e as imediações da Alameda Nothmann e evitar o cruzamento com as ruas e avenidas vizinhas, incluindo viadutos rodoviários nas extremidades e três passarelas internas sobre as linhas.

Na época, além da operação de um material rodante e de tração com dimensões acanhadas, também contribuiu para a definição da cota de rebaixamento, o costume britânico de praticar um gabarito restrito, como aliais no próprio Reino Unido.

Com o fim da concessão inglesa em 7 de novembro de 1946, a ferrovia assumiu a nova denominação Estrada de Ferro Santos a Jundiaí – EFSJ, sob controle federal que, em 1957 seria incorporada à Rede Ferroviária Federal S. A. – RFFSA, passando por diversas mudanças administrativas até a atual CPTM e a MRS Logística S. A..

No entanto as limitações de gabarito continuaram, assim como o espaço apertado na Estação da Luz, contendo quatro vias e três plataformas com grande movimento de passageiros e passagem dos trens de carga.

A Estação da Luz, com seus viadutos e passarelas em altura baixa, e um espaço restrito com apenas quatro vias. (Foto: João Bosco Setti)

A E. F. Sorocabana – EFS já tinha a concessão para a linha de Mairinque a Santos desde 1893. Mas, somente em 1928 foram iniciadas as obras na Serra entre Samaritá e Evangelista de Souza, correndo os primeiros trens no final de 1937.

O fim do monopólio da EFSJ foi consolidado pela EFS na década de 1950, com a construção da linha paralela ao Rio Pinheiros, e na parte rodoviária com a construção da primeira pista da Rodovia Anchieta em 1957.

Em 1982 a Fepasa iniciou um plano de modernização do Corredor Campinas – Santos, construindo variantes e remodelando o trecho da Serra com a implantação da bitola mista e duplicação, resultando na expansão da capacidade de transporte, sendo as obras concluídas na década de 1990.

Como na EFSJ o sistema funicular apresentava-se saturado, sem condição de ampliação e com restrições de peso e gabarito, no final da década de 1960 iniciou-se a construção do novo sistema de cremalheira-aderência, utilizando o leito da “Serra Velha”. Quase todas as antigas instalações foram removidas, sendo instalada a rede aérea e lançada a via permanente com a cremalheira, com a inauguração do novo sistema em 1974.

A partir de 1956 iniciou-se uma nova fase de intermodalidade nos transportes, quando o empresário americano Malcolm McLean, com apoio do engenheiro Keith Tantlinger, inventou o moderno contêiner, adotando um sistema de apoio e fixação nas extremidades e dando origem às normas ISO inclusive quanto às dimensões, padronizando os comprimentos de 20 e de 40 pés.

No Brasil o transporte ferroviário de contêineres começou ainda de forma tímida na década de 1960 na RFSSA e na Fepasa, e a RFFSA chegou a operar um transporte regular entre o Rio e São Paulo em parceria por vários anos com a Transrodo, evoluindo depois para outras parcerias, embora nunca em grandes volumes.

Atualmente observa-se nas ferrovias uma tendência de crescimento do transporte intermodal e de grãos, e não se prevê um aumento futuro do minério de ferro na Região Sudeste devido à maior expansão do sistema Norte da Vale em torno da Serra dos Carajás.

No campo do transporte intermodal, a MRS tem apresentado excelentes resultados, destacando-se os corredores de contêineres ao longo de toda a sua malha, da mesma forma que a Brado Logística S. A. nas linhas da Rumo Logística S. A..

Em 1984 a ferrovia Southern Pacific iniciou o transporte de contêineres empilhados em vagões rebaixados, aproveitando o gabarito generoso do Oeste americano, surgindo o Double Stack (ou pilha dupla), que rapidamente se expandiu no país, alcançando também o Canadá e o México.

Outros países também adotaram o Double Stack, destacando-se a Austrália, a Arábia Saudita, a Índia e o Panamá, e a partir de 2012 também o Brasil se juntando ao clube, com as experiências da MRS na Baixada Santista, visando criar um fluxo entre as margens direita e esquerda do Porto de Santos.

A MRS adquiriu vários vagões especiais, realizando modificações no trecho para atender ao gabarito, mas o transporte ainda não se desenvolveu, muito provavelmente pela curta distância de transporte.

Em 2014 a Brado Logística iniciou as experiências com o Double Stack, adquirindo um vagão, e então realizando com a Rumo as obras de adaptação do gabarito no trecho entre Boa Vista, próximo a Campinas, e Rondonópolis, MT. Após a chegada do primeiro lote de 74 vagões, a operação comercial teve início em junho de 2019, entre os terminais de Sumaré, SP, e diversos pátios no Mato Grosso do Sul e no Mato Grosso.

O início da operação do trecho central da Norte – Sul, como concessão da Rumo, ampliará a rede de Double Stack, em tese, alcançando o Porto de Itaqui, caso ocorram acordos com a VLI e a E. F. Carajás, cujas linhas são de construção moderna e com gabarito adequado, exigindo poucas ou nulas adaptações. Merece destaque o fato de que durante a assinatura do contrato de concessão entre o governo federal e a Rumo em 31 de julho de 2019, havia uma pequena composição de Double Stack em exposição no pátio de Anápolis, GO.

Na ponta paulista, todavia, permanece a limitação, não sendo possível fazer a travessia na capital, pois o gabarito das linhas eletrificadas da CPTM impede, especialmente na Estação da Luz, com seus viadutos e passarelas. Nem mesmo o recurso de rebaixamento de uma das vias seria possível, devido à existência das galerias do metrô e dos acessos subterrâneos às plataformas.

Por outro lado, a linha de simples aderência da antiga EFS entre Paratinga e Evangelista de Souza, devido ao grande número de túneis, oneraria em demasia a ampliação das galerias, bem como os viadutos e pontes em sucessão impediriam o rebaixamento da via.  

Resta, portanto, como opção mais viável na Serra, a utilização da cremalheira da MRS, bastando elevar a altura do fio de contato da rede aérea para no mínimo 6,5 m, provavelmente também adaptando os pantógrafos das locomotivas Stadler.

Esta solução, que segundo alguns rumores, já estaria no radar da MRS, permitira a ampliação do transporte intermodal em Double Stack da Baixada Santista até o trecho sul na capital seguindo pela futura segregação de Rio Grande da Serra à Mooca. Utilizando-se a Segregação Leste, recém construída pela MRS, também seria alcançado o Vale do Paraíba, exigindo inevitáveis obras de adaptação no Ramal de São Paulo, mas em sua maioria de menor vulto e quantidade, por se tratar de uma linha mais moderna.

Então, como romper a barreira do gabarito entre as linhas da MRS e as do interior paulista?

A primeira solução seria a construção de Ferroanel Norte, considerado como uma obra muito onerosa para a atual realidade paulista e nacional.

A outra solução então seria o Ferroanel Sul, interligando Evangelista de Souza com Ouro Fino, próximo a Rio Grande da Serra, permitindo estabelecer um corredor intermodal da Baixada Santista e do Vale do Paraíba com a Ferrovia Norte – Sul e até o Porto de Itaqui.  

O plano original do Anel Ferroviário, incluindo trechos de linhas já existentes e outros a serem construídos. (Relatório Fepasa 1971/1972)

O Ferroanel Sul, tal como o Norte, está previsto para acompanhar a margem do Rodoanel, porém com menos restrições ambientais, e com sua execução, todos os principais trens de contêineres contornariam a capital, aliviando as linhas da MRS a serem segregadas na CPTM, até porque continuaria existindo um grande gargalo de capacidade entre os pátios da Mooca e da Barra Funda, com a passagem dos trens de carga compartilhando as linhas de passageiros justamente nas estações do Brás e da Luz.

É importante que se pense em construir o Ferroanel Sul o mais breve possível, pois desde 1969 o assunto vem sendo tratado a partir de um projeto do Anel Ferroviário de São Paulo, elaborado pela Secretaria de Transporte de Estado de São Paulo.

Trata-se de uma obra de infraestrutura, portanto de responsabilidade do Poder Público, estadual e federal, e não de concessionárias com prazo de contrato limitado.

Em seu site, a empresa Planservi Engenharia informa ter elaborado Estudos Operacionais e Projetos Preliminares do Ferroanel Sul para o DERSA entre 2004 e 2005.

Infelizmente uma obra de tão grande importância estratégica é discutida anos a fio por sucessivos governantes, mas nunca sai do papel, mesmo com trechos de seu traçado já desapropriados, enquanto contornos ferroviários de cidades com viabilidade duvidosa, ou no mínimo de menor prioridade, são levados adiante para em poucos anos serem novemente engolidos pela expanção urbana desordenada daquelas mesmas prefeituras que antes pressionavam pela construção.

As principais linhas de carga no entorno de São Paulo, com as indicações referentes ao gabarito necessário para o Double Stack. (elaboração própria)

Sobre o Autor:

João Bosco Setti

Engenheiro e pesquisador de história ferroviária, Diretor Presidente da Sociedade de Pesquisa para a Memória do Trem e autor de vários livros e artigos em revistas na área ferroviária. Associado da ABPF e da Associação de Engenheiros Ferroviários – Aenfer.